DANDARA
No dia em que Zumbi teve a cabeça degolada num golpe à resistência negra,
um ano e nove meses já teriam transcorrido desde a morte igualmente trágica da
face feminina do Quilombo de Palmares, Dandara. A história da figura
apontada como sua mulher permanece cercada de incertezas, com escassos
registros historiográficos. Relatos dão conta de que a vida de Dandara teve fim
em fevereiro de 1694. Ela teria se jogado de uma pedreira ao abismo: uma decisão
extrema para não se entregar às forças militares que subjugaram o quilombo,
onde chegaram a viver 30 mil pessoas distribuídas em aldeias.
Descrita como uma heroína, Dandara dominava técnicas da capoeira e teria
lutado ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas consequentes a ataques
a Palmares, estabelecido no século XVII na Serra da Barriga, região de Alagoas,
cujo acesso era dificultado pela geografia e também pela vegetação densa. Não
se sabe se a mulher de Zumbi nasceu no Brasil ou no continente africano, mas
teria se juntado ainda menina ao grupo de negros rebeldes que desafiaram o
sistema colonial escravista por quase um século. Ela participava também da
elaboração das estratégias de resistência do quilombo.
Dandara é a mais representativa liderança feminina na República de
Palmares. Participou de todas as batalhas, de todas as lutas, de tudo que lá
foi criado, organizado, vivido e sofrido. Sabe-se pouco sobre as suas origens:
onde nasceu, de onde veio. Alguma literatura diz que ela tinha ascendência na
nação africana de Jeje Mahin - afirma a antropóloga Maria de Lourdes Siqueira,
professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA). - Não se conhece
a imagem de Dandara mas, pelo seu talento demonstrado, ela é uma mulher forte,
bela, guerreira, persuasiva, líder, e obstinada por liberdade. Dandara
contribuiu com toda a construção da sociedade de Palmares, e para sua
organização socioeconômica, política, familiar.
Hoje referência no
movimento negro e homenageada por grupos feministas,
Dandara era também mãe - ela e Zumbi teriam tido três
filhos. Além de lutar, participava de atividades cotidianas em Palmares, como a
caça e a agricultura. De acordo com Sandra Santos, historiadora e especialista
em história e cultura afro-brasileira, no quilombo era praticada a policultura
de alimentos como milho, mandioca, feijão, batata doce, cana de açúcar e
banana. Os palmarinos conheciam a metalurgia e fabricavam utensílios para a
agricultura e a guerra. Trabalhavam também com a madeira e a cerâmica. A
palmeira pindoba, cuja abundância na região deu origem do nome do quilombo, era
usada na fabricação de óleo, produção de bebidas, cobertura de casas feitas de
madeira e tecelagem de cestos e cordas. As atividades se destinavam inicialmente
à subsistência, mas os negros rebeldes chegaram a realizar comércio com vilas e
engenhos da região.
O trabalho era dividido e exercido segundo as aptidões de cada um. A
liderança, o plantio e a colheita, as funções de luta direta e física ou as
ligadas ao estabelecimento de estratégias e organizações políticas. Todas as
funções poderiam ser exercidas por pessoas de ambos os sexos. Havia, é claro,
as funções mais ligadas ao universo feminino: ser mãe, companheira, ministrar
os primeiros cuidados às crianças.
Os ataques a Palmares teriam se tornado frequentes a partir de 1630, com
a invasão holandesa. Segundo a narrativa em torno de Dandara, ela teria tido
importante papel no rompimento do marido com seu antecessor, Ganga-Zumba, primeiro
grande chefe do Quilombo de Palmares e tio de Zumbi. Em 1678, Ganga-Zumba
assinou um tratado de paz com o governo de Pernambuco. O documento previa que
as autoridades libertassem palmarinos que haviam sido feito prisioneiros em um
dos confrontos. E também a liberdade dos nascidos em Palmares, além de
permissão para realizar comércio. Em troca, a partir dali, Os habitantes do
quilombo deveriam entregar escravos fugitivos que ali buscassem abrigo.
Dandara, ao lado de Zumbi, teria sido contrária ao pacto por entender que se
tratava de um acordo que não previa o fim da escravidão. Ganga-Zumba acabou
sendo morto por um dos negros contrários à sua proposta.
Na
“Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”, o pesquisador da cultura
afro-brasileira e compositor Nei Lopes descreve no verbete Dandara: “Personagem
lendária da história de Palmares. Celebrada como a grande liderança feminina da
epopeia quilombola, teria morrido quando da destruição de Macaco (nome do
principal quilombo Palmarino). Contudo sua real existência está ainda envolta
em uma aura de lenda.”
Será que ela existiu mesmo? A história de Palmares, de um modo geral, é
baseada em documentos, mas há também muita invencionice. É difícil dizer se a
personagem existiu e de onde surgiu - põe em dúvida Lopes.
Dandara, assim como Maria Felipa (heroína da independência da Bahia e,
por conseguinte, do Brasil) e Luísa Mahin (líder dos Malês e participante da
Sabinada), simplesmente são ignoradas pelos livros didáticos, porém sobrevivem
no imaginário popular porque se identificam e são identificadas com as mães e
companheiras espalhadas por todo o território nacional. O que a historiografia
não supre, a literatura resolve. As crenças populares abraçam, recriam, a boca
do povo favorece. Os contos e lendas que crescem em volta dessas personagens as
transformam em mitos, exemplos. Os textos oficiais não as reconhecem ainda, mas
elas teimam em subsistir de outras maneiras. Ninguém as esquece porque são mais
lindas que a verdade dos homens, mais fortes que a história construída à força,
imposta pelo poder dos vencedores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário